Dessensibilização e Reprocessamento através dos Movimentos Oculares (EMDR): uma ferramenta para tratamento de infertilidade

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Dessensibilização e Reprocessamento através dos Movimentos Oculares (EMDR): uma ferramenta para tratamento de infertilidade

Resumo:

Dessensibilização e Reprocessamento através dos Movimentos Oculares (EMDR) é uma abordagem psicoterápica utilizada para tratamento de traumas psicológicos, apresentando também eficácia para uma ampla gama de experiências negativas registradas dolorosamente na memória emocional dos pacientes. Este artigo relata um caso de uma mulher com infertilidade sem causa orgânica que apresentava crenças desqualificativas em relação à autoestima e desempenho.Usou-se o referencial sobre Esquemas Mentais Desadaptativos Precoces construídos a partir de experiências infantis nocivas. Tais crenças foram trabalhadas através do EMDR, abrindo caminho para a tão desejada gravidez. Foram realizadas duas sessões de 90 min cada, com protocolo de 8 fases e intervalo de uma semana.

Palavras chave: infertilidade, EMDR, Esquemas Mentais Desadaptativos Precoces

Eye Movement Desensitization and Reprocessing (EMDR): a tool for treating infertility

Abstract:

Eye Movement Desensitization and Reprocessing (EMDR) is a psychotherapy approach for the treatment of psychological trauma symptoms; it is also considered to an efficient tool for a wide range of negative experiences painfully encoded in patients’ emotional memories.The clinical case reported in this article describes the EMDR treatment of an infertile woman with no organic cause identified for her infertility. She reported disqualifying beliefs regarding self-esteem and performance. An early maladaptive mental schema made up of emotional memories of harmful childhood experiences was used as a reference model. These beliefs were worked through EMDR treatment in order to pave the way for a pregnancythat had been awaited for so long. The treatment, lasting less than a week, was completed in two sessions of 90 minutes each that included all eight phases of the EMDR protocol.

Keywords: infertility, EMDR, Early Maladaptive Mental Schema

Introdução

Infertilidade é definida como incapacidade de engravidar em casais sexualmente ativos que não estejam fazendo uso de métodos anticonceptivos ao longo de um ano. Afeta de 9% a 15% da população em idade fértil, ou seja, aproximadamente 80 milhões de pessoas(Bolvin et al., 2011).

Existe um consenso sobre a importância de fatores intangíveis que podem reduzir a fertilidade, mas frequentemente os profissionais não conseguem precisar as causas. O sofrimento emocional, mesmo em indivíduos sem transtornos mentais, acarreta alterações nos sistemas  neuroendocrinológico e imunológico, em especial disfunções no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal(Hori et al., 2010).

Embora não seja possível afirmar que o estresse emocional seja causa de infertilidade, há um estudo que correlacionou experiências adversas na infância, alterações no ciclo menstrual e dificuldades reprodutivas (Jacobs et al., 2015). Também está descrita a existência de diversos estilos de enfrentamento dessa condição. A incapacidade de ter filhos pode acarretar consequências emocionais negativas e estigma para os casais, na medida em que a  representação social da infertilidade pode acarretar desqualificação da mulher(Domingues, 2002; Trindade eEnumo, 2002).

Mulheres com dificuldade para engravidar podem ter culpa excessiva e sentimentos negativos como tristeza, vergonha, ansiedade, impotência e incapacidade. (Moreira e Azevedo, 2010;Coch, 2014). Tais sentimentos são frequentemente acompanhados de esquemas mentais negativos.

Esquemas mentais são padrões de interpretação da realidade pessoal e contextual, formados por um conjunto de crenças, positivas ou negativas, desenvolvidos na infância ou em momentos posteriores da vida e mediados pelo temperamento.Alguns desses esquemas podem estar no cerne de sofrimentos psicológicos na fase adulta, arquivados como memórias traumáticas(Young et al., 2003).

EyeMovementDesensitizationandReprocessing (EMDR)é uma abordagem psicoterápica desenvolvida para tratar trauma psicológico e outras experiências negativas. Inicialmente, o EMDR foi utilizado em pacientes com Transtorno de Estresse Pós Traumático, mas ao longo do tempo tem se mostrado útil para tratar também uma ampla variedade de problemas psicológicos, incluindo transtornos físicos induzidos pelo estresse e sintomas físicos sem causa médica (Shapiro, 2014).

Os modelos desenvolvidos por Young e Shapiro, respectivamente Terapia dos Esquemas e EMDR, tem em comum a valorização do processamento da informação em vários níveis (afetivo, corporal e cognitivo). A integração desses modelos pode se traduzir em maior êxito do tratamento psicoterápico(Young et al., 2002).

O caso ilustra o uso do EMDR como uma técnica adjuvante para modificar “esquemas negativos precoces” e o impacto dessa abordagem na fertilidade.

Método

Caracterização do caso

Ana é uma mulher de 35 anos, casada.

Encontra-se em psicoterapia há vários anos e foi encaminhada para algumas sessões de EMDR. O motivo da procura foi dificuldade de engravidar, embora nenhuma causa orgânica tenha sido constatada. Referia-se ao “medo de ser infértil e de ter algum problema”.

Ana cresceu numa família de classe média e tem uma irmã mais velha.Relatou que sua mãe foi muito autoritária e frequentemente a desqualificava, sempre cobrando alto nível de desempenho das filhas e comparando-as negativamente com os filhos de amigos.

Ana contou ter sido uma criança muito tímida, medrosa e contida. Algumas dificuldades escolares a faziam sentir-se burra e envergonhada. Referiu-se também a um sentimento de fracasso em relação ao primeiro casamento “que não deu certo” e queixou-se de pouca visibilidade profissional, apesar de seu esforço e dedicação.

Instrumentos

A pacientefoiavaliadaatravés de uma entrevista de avaliação clínica. Foisolicitado o preenchimento do Questionário de Esquemas de Young para identificar esquemas precoces desadaptativos. Elanãoapresentavacritériosdiagnósticosparaquaisquertranstornosmentais de acordo com o Manual  Diagnóstico e Estatístico dos TranstornosMentais: DSM-5 (American Psychiatric Association, 2013).

Durante as sessões foramutilizadas as escalas Validity of Cognition (VOC), para avaliação da validade da cognição positiva, e Subjective Unit of Distress Scale (SUDS), para avaliar o nível de perturbação.

Procedimento

Ana realizou duas sessões de EMDR, com duração de 90 minutos cada uma, com intervalo de uma semana.

Primeira sessão   

Na primeira sessão utilizou-se o protocolo de oito fases do EMDR. Ana  reprocessou uma cena com a mãe, onde estava sendo desqualificada em relação às filhas de amigas: “tu és incompetente e burra!”. A  crença negativa que acompanhava essa lembrança foi “não sou boa o suficiente; nunca vou conseguir”, sendo as emoções correspondentes tristeza e desvalia, a sensação corporal descrita“um aperto no peito”. SUDS(The SubjectiveUnitsofDisturbanceScale) antes do reprocessamento 8 e após 0. A crença positiva escolhida foi “sou capaz”, com VoC(ValidityofCognition) inicial 3 e VoC final 7. Em um segundo momento reprocessou a questão  da falta de prazer sexual nas relações com o marido. A crença negativa associada a queixa foi “sou defeituosa”, sendo as emoções identificadas desvalia e vergonha e a sensação corporal“um desconforto no abdômen”. SUDS inicial 9 e final 1. A crença positiva escolhida foi “mereço ter prazer”, com VoC inicial de 2 e final de 6.

Segunda sessão

Inicialmente foi proposta uma breve revisão do que havia sido reprocessado na sessão anterior, identificando-se a elevação do VoCrelacionado à crença positiva “mereço ter prazer” de 6 para 7.

A seguir, a paciente realizou o reprocessamento da questão referente às  tentativas frustradas para engravidar. A crença negativa apresentada foi “não vou conseguir”, acompanhada por  medo e angústia, identificados no corpo como “um aperto na garganta”. SUDS medido no início foi 6 e ao final zero. A crença positiva instalada foi “sou capaz/ vou conseguir” apresentando um VoC inicial de 3 e final de 7.

Finalizando, a terapeuta solicitou que a paciente construísse uma imagem mental positiva de sua gravidez, desde o momento da concepção até o sucesso no parto em forma de projeção numa tela para ser instalada.

Resultados

Cerca de um mês após as sessões, a paciente entrou em contato para contar que havia engravidado e que atribuía grande parte do sucesso ao tratamento com EMDR. Notícias posteriores informaram que a gravidez e o parto transcorreram normalmente, assim como o desenvolvimento do bebê.

Discussão

Apesar de não ter uma situação traumática clara, Ana descrevia experiências nocivas na infância com a mãe. Nesse contexto, desenvolveu esquemas mentais distorcidos e afetosdolorosos.

De acordo com o referencial de Young, a pacienteapresentavaesquemasdisfuncionaisrelativosa doisdomínios: (1) desconexão/rejeição representados por crenças negativas de defectividade/vergonha, isto é, sentimentos de que se é falho, inferior ouinvalidoemaspectosimportantes, envolvendo comparações e insegurança em relação aos outros e (2) autonomia e performance prejudica dos que inclui o esquema de fracasso, ou seja, acrença de quefracassououfracassaráinevitavelmenteemáreas de desempenhoenvolvendoautoconceitonegativo.

De acordo com o modelo do EMDR, a resolução da perturbação de Ana foi alcançada pela estimulação dos processos de autocura da própria paciente. As crenças negativas armazenadas no sistema nervoso foram acessadas, processadas e adaptativamente resolvidas, tornando-as fonte de força e resiliência.

Conforme Isabel Coch, trabalhos na área de infertilidade valorizam aspectos como depressão e ansiedade mas falham em não abordar essa questão como um verdadeiro trauma.

O EMDR mostrou-se umavaliosaferramentaquepodeserutilizada de forma complementar a outras abordagens psicoterápicas, otimizando resultados e sem impacto negativo independente do modelo de tratamento utilizado.

Referências:

  1. American PsychiatricAssociation. (2014). DSM-5: manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed.
  2. Bolvin J., Griffiths E., Venetis C.A. (2011). Emotional distress in infertile women and failure of assisted reproductive technologies: meta-analysis of prospective psychosocial studies.BMJ 342:d233.
  3. Coch I. (2014). Infertilidad y EMDR. A lecture on I CongresoEspañol de EMDR, Madrid, Spain, 12-14 december.  
  4. Domingues R. (2002). Psícologia e InfertilidadRev MédClínCondes 13(1): 35-39
  5. Hori H., Ozeki Y., Teraishi T., Matsuo J., Kawamoto Y., Kinoshita Y. et al. (2010). Relationships between psychological distress, coping styles, and HPA axis reactivity in healthy adults. Journal of Psychiatric Research, 44(14), 865-873.
  6. Jacobs M.B., Boynton-Jarret R.D., Harville E.W. (2015). Adverse.childhood event experiences, fertility difficulties and menstrual cycles characteristics.J PsychossomObstGinaecol 31: 1-12.
  7. Moreira S.N.T., Azevedo G.D. (2010) Stress and the woman reproductive function, Polêmica Revista Electrónica 9(4): 58-63.
  8. Shapiro F. (2014). The role of Eye Movement Desentization and Reprocessing (EMDR) therapy in medicine: addresing the psychological and physical symptoms stemming from adverse life experiences, The Permanente Journal, 18(1), 71-77.
  9. Trindade Z.A., Enumo S.R.F. (2002). Triste e incompleta: uma visão feminina da mulher infértil, Psicol. USP, 13(2), 151-182.
  10. Young J.E., Klosko J.S., Weishaar M.E. (2003). Schema therapy: conceptual model. In J.E. Young, J.S.Klosko, M.E.Weishaar (Ed), Schema therapy: a practioner’s guide (pp. 16-69). New York, NY The Guilford Press.

Young J.E., Zangwill W.M., Behary W.E. (2002). Combining EMDR and schema-focused therapy: the whole may be greater than the sum of the parts. In F Shapiro (Ed.), EMDR as an Integrative psychotherapy approach (pp. 181-208). Washington, DC: American Psychological Association Press.

Título abreviado: EMDR e infertilidade

Eye Movement Desensitization and Reprocessing (EMDR): a tool for treating infertility

Maria Regina Sana1, Luísa Weber Bisol2*

  1. Psicóloga especialista em Terapia Cognitivo Comportamental, terapeuta EMDR, Clínica de Temperamento e Humor
  2. Psiquiatra, PhD. em Bioquímica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, terapeuta EMDR, Clínica de Temperamento e Humor e Hospital São Lucas da PUCRS

*Autor correspondente:

Avenida Iguaçu 451 sala 201

90470-430

Porto Alegre – RS – Brasil

Telefone: 5551 33831291

e-mail: lwbisol@gmail.com

Contato autores:

Maria Regina Sana

Avenida Iguaçu 451 sala 201

90470-430

Porto Alegre – RS – Brasil

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Luísa Weber Bisol

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90470-430

Porto Alegre – RS – Brazil

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e-mail: lwbisol@gmail.com

Contribuição dos autores: Maria Regina Sana foi a psicoterapeuta que conduziu o caso clínico apresentado. Maria Regina Sana e Luísa Weber Bisol fizeram a revisão bibliográfica e redação do artigo.

ORCID® Record number:0000-0002-8657-8801